segunda-feira, 6 de julho de 2009

Abbé Pierre


'Abbé' Pierre: o insurrecto de Deus
por

Anselmo Borges

Padre e professor de Filosofia04 Fevereiro 2007


No dia 29 de Dezembro passado, vi--me apanhado na rua por dois jornalistas: "Qual é a figura do ano?" Perante aquela espera inesperada e o meu silêncio, diz um: "Pela positiva ou pela negativa." Aí, mais aliviado, respondi: "Pela negativa, George W. Bush. Porque não está à altura das suas responsabilidades mundiais. Avançou para a guerra do Iraque, uma guerra de consequências imprevisíveis."

Depois, reflecti que poderia ter respondido pela positiva. Havia, por exemplo, Muhammad Yunus, o "banqueiro dos pobres", que criou o Grameen Bank e impôs a ideia de que o microcrédito ajuda a mudar a face do mundo. Ao receber o Prémio Nobel da Paz, foi claro: "As frustrações, a hostilidade e a cólera geradas por uma pobreza abjecta não podem assegurar a paz em nenhuma sociedade."

Porque será que são sobretudo os erros, os desastres, as guerras, a maldade a ocupar os noticiários?

De qualquer forma, o positivo supera o negativo e a bondade a maldade e os seres humanos são sensíveis à generosidade.

O abbé Pierre era há muito a figura mais popular entre os franceses. A França pôs luto pela sua morte. A missa do funeral foi transmitida pela televisão e à última homenagem compareceram o Presidente, o primeiro-ministro e praticamente todo o Governo.

Nasceu em 1912 em Lyon. Aos 19 anos, entrou nos Franciscanos Capuchinhos. Durante a ocupação nazi, viveu na clandestinidade, ajudando judeus e resistentes. Foi deputado de 1945 a 1950. Criou em 1949 a primeira comunidade Emaús, ao serviço dos sem-abrigo e dos mais desfavorecidos - o termo faz alusão ao passo do Evangelho que narra a aparição de Cristo ressuscitado aos dois peregrinos de Emaús, que o acolheram em casa. A partir de 1971, o movimento alcançou dimensão planetária - os Companheiros de Emaús actuam em 40 países.

Com a guerra, a França ficou devastada. Se a partir de 1952 o crescimento económico se acelerou extraordinariamente, as desigualdades eram profundas no plano social e notórias sobretudo ao nível do alojamento. O Inverno de 1954 foi particularmente duro, tendo sido nesse contexto que o abbé Pierre lançou o famoso apelo radiofónico de 1 de Fevereiro a favor dos sem-abrigo, que desencadearia o que chamou uma "insurreição da bondade". Nos centros de acolhimento, lia-se: "Tu que sofres, sejas quem fores, entra, dorme, come, retoma a esperança, aqui, és amado."

Era um padre de oração e de acção a favor dos pobres e da dignidade. Dele disse o Presidente francês: "Representará sempre o espírito de revolta contra a miséria, o sofrimento, a injustiça, e a força da solidariedade."

Era um homem de espírito livre e crítico, mesmo no domínio da fé. No seu último livro, Meu Deus, Porquê?, ousa perguntar a Deus até quando vai durar esta tragédia do incrível sofrimento humano. Declara que a concepção expiatória da morte de Cristo é "horrível", pois levou também ao dolorismo, "uma abominação e uma caricatura da vida cristã". Depois de confessar que teve relações sexuais com mulheres, embora "de forma passageira", coloca "a questão crucial para a Igreja do casamento dos padres e da ordenação de homens casados", esperando que Bento XVI permita a comunhão aos católicos divorciados recasados. Porque não utilizar a palavra "aliança" para os casais homossexuais, que "viveram frequentemente o seu amor na exclusão e na clandestinidade"? A ordenação das mulheres é "muito provável" e "desejável".

Considerava "absurdo" que Deus apenas se revelasse e salvasse a pequeníssima parte da humanidade constituída pelos baptizados. Nada permite afirmar que o inferno existe. Defensor da laicidade, opunha-se ao regime de "cristandade" e pensava que "o papado reflecte ainda o rosto do papa-imperador", sendo necessário "libertar a Igreja da tutela romana sobre todas as Igrejas locais". Lembrando as "cruzadas" e os seus efeitos, alertou para o perigo de "responder à terrível provocação dos terroristas da Al-Qaeda com uma nova cruzada".

Admirador de Teilhard de Chardin, que soube reconciliar a visão cristã com a teoria evolucionista, sonhava com a capacidade da Teologia para reler e reinterpretar, por exemplo, a doutrina do "pecado original" ou a "transubstanciação" - palavra "um pouco bárbara" -, a substituir por "Presença". Afinal, "as coisas últimas só em linguagem poética se podem dizer".

Tinha como lema: "Viver é aprender a amar", punha a compaixão "no cume das virtudes" e definia a morte como "o encontro com o Absoluto, o Eterno". Para ele, foi em 22 de Janeiro de 2007, aos 94 anos.

5 comentários:

Céu disse...

António

A propósito do teu texto, aqui deixo para ti uma surpresa.
Procurei e achei interessante.
beijos
Céu

Anónimo disse...

Céu: em primeiro lugar quero informar-te que já sou sócio, inscrevi-me mais o Manuel da tia Élia, no dia do funeral do pai do Tomé. Devo confidenciar-te, que me senti envergonhado, por ter enviado um comentário, referente aos aniversários, sem reflectir na intenção mais apropriada para os sócios.
Quanto ao texto do Padre Anselmo Borges, incluido na análise feita pela faculdade de Ciênçias e Letras de Coimbra, " os insurretos" devo dizer-te que o Título me arrepiou os cabelos. A filosofía do Padre Anselmo, no que respeita o Abbé Pierre, é apenas a recolha de elementos e informações, prepagadas pelos jornais, e emissões televisivas.
Reconheço ser uma ideia bastante agradável que honra o meu texto, e a mim pela mesma ocasião, apesar de eu apenas ter tido dois contactos com o Abbé Pierre, enquanto exercia a minha profissão, transportando-o de uma Rádio "rue François 1º" até à simples moradia em Charenton-le-Pont. Pelo caminho conversámos bastante, o tema foi, como quase sempre com ele, a pobreza e a injustiça, tendo eu o atrevimento de lhe perguntar:porquê tanta luta sabendo que não pode mudar o mundo?
-ao que ele respondeu: a minha luta como diz, não é contra os maus, mas sim pelos bons.
Tudo o que vem escrito na tua página é verdade, eu sabia de quase tudo. Que era crítico e polémico, única maneira de se fazer ouvir. Se não tivesse havido o apelo de 1 de Fevereiro 1954, a sua activa luta ficaria no esquecimento, assim como a do Colouche, Com os "restos du coeur".
A segunda vez que o transportei, da TF1 até à Bastille, reconheceu-me e dirigiu-se a mim com estas palavras:dieu veux, nous faire rencontrer, mon petit potugais!...
Como a Madre Teresa de Calcuta, também o Abbé Pierre, é para mim um monumento histórico do bem-fazer. Trajava mal, porque a sua beleza reflectia-se no interior. Vivia numa miserável casa, quando podia ter um grande palácio. Por isto e tantas outras coisas, revoltava-se contra tudo e todos,simplesmente por um mundo mais justo.O seu partido era dos oprimidos.A ideia dele não era vencer, apenas que fossem reconhecidos os que viviam na infelicidade. Tenho a certeza, que obteve o seu lugar lá onde quiz encontrar-se com a paz, descanso para a sua alma.
P.S. Faço sinceros votos para que muita gente leia a tua página, não só pelo esforço de colocares lá um texto digno, mas pelo teu esforço para com os associados. Um enorme muito obrigado com beijos afectuosos. António Brás Pereira

Céu disse...

António

Parabéns pela tua inscrição na ASCRR. Como bairrista que és, nem podia ser de outra maneira, fico muito satisfeita, podes crer.
Sobre o aniversário, só tens que sentir orgulho pelo comentário que aqui deixaste, esses são sempre bem-vindos. Pena que não haja mais gente a fazer o mesmo, e depois este lugar é de todos, sócios e não sócios.
Sobre Abbé Pierre, palavras para quê, já disseste tudo e valeu a publicação especialmente pelo sublime comentário que fazes sobre ele. É mais uma grande revelação tua. Também não gostei do título, mas pareceu-me bem, mais a parte final do artigo.
Gostei imenso de toda a explicação e a comparação que fazes com a Madre Teresa, estou totalmente de acordo contigo.
Mais uma vez obrigada pela tua enorme participação.
Um beijinho
Céu

Anónimo disse...

Na (ASCRR) deixo eu um apelo, tal como o fez, o Abbé Pierre. Para esta associação, criar pernas, para poder andar, necessita da ajuda de todos os Transmontanos, em particular dos Rebordainhensses, dispersos pelos quatro cantos do Mundo, cujas raizes os ligam a uma terra, certo pequena, mas coesa, rija, amada, tanto pelos que lá viveram, como pelos que a adoptaram, tais como o João, cujo exemplo de lealdade e afecto, sirva de lição, aos menos convictos de que é um bém comum,fazendo simplesmente a ligação, entre seres partilhantes do mesmo ideal, que é o bém estar.
Uma Associação necessita de fundos, a Junta de Freguesia, e o Município podem angariar parte deles. Não creio que os trabalhadores benévolos, pretendam destronar, quem quer que seja dos cargos adquiridos democráticamente. Sei pelo contrário que precisam de muita gente a ajudá-los. Demonstrar nos funerais que eram amados e respeitados não basta. Um Centro dia e Apoio Domiciliário, uma vez que foi adquirida a escola para essse fim, e que pessoas se desponibilizaram para gratuitamente, elaborar um projecto, deve ser uma realização comparticipada por todos nós,cada qual à sua maneira, mas colaborando.
Ideias, são bem-vindas. Comentários,textos educativos, jogos, distração tudo quanto possa publicitar ajudando a seguir em frente com um projecto benéfico, necessário.Sendo eu, apenas um sócio recente, não pretendo julgar ou melindrar nimguém com este comentário, são epenas raizes profundas que me ligam à terra onde nasci e que será sempre minha.
Um abraço: António Brás Pereira

Céu disse...

António

Ainda bem que apareceste para dares mais um pouco de vida a esta página tão ignorada ou esquecida pelos nossos conterrâneos.
Comentários tão positivos e onde se aprende com os teus conhecimentos e com a tua experiência de vida, e que tão bem soubeste tirar partido do lado mais positivo que no fundo, é o mais importante.
Não importa se os espinhos que tivemos que pisar foram dolorosos. Importa é sabê-los desviar para podermos passar. E foi o que tu fizeste, por isso tens o valor que tens e também o amor pela terra onde nasceste e foste criado.
Comenta sempre, é com muito agrado que os leio.
Beijinhos
Céu